( Lúcia Helena- Uol )- Alguém desavisado, ao ver a pequena incisão na virilha feita apenas sob anestesia local, pode imaginar que se trata de um exame de cateterismo do coração. Mas o cateter de apenas 2 milímetros de diâmetro não segue na direção do peito e, sim, pega o caminho de artérias que irrigam a porção final do intestino. Sua missão tampouco é desobstruí-las.
Aliás, muito pelo contrário — é entupir aquelas que estiverem causando uma dolorosa hemorroida. Em pouco mais de uma hora, está feito. E o problema que coçava, ardia, pinicava e fazia sangrar vai embora. Até hoje, apenas cinco pacientes resolveram essa questão dolorosa assim, com o procedimento desenvolvido no InRad (Instituto de Radiologia) do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Esse entupimento de artérias feito sob total controle tem nome: embolização. Ela até já é usada em países como os Estados Unidos e a França para dar cabo desses vasos dilatados no reto e no ânus, tão desagradáveis quanto comuns. Saiba que de metade a 60% da população do planeta teve, tem ou terá, um dia, uma hemorroida para transformar suas idas ao banheiro em tormentos. A técnica que está sendo usada no InRad em pacientes selecionados pelo departamento de coloproctologia da faculdade não é inédita apenas por ser a primeira vez que a embolização é empregada para tratar hemorroidas no país. Na realidade, ela tem particularidades, buscando melhorar os resultados dessa alternativa minimamente invasiva em relação às embolizações feitas em outros cantos do mundo para resolver a tal doença hemorroidária. Em duas, seis horas no máximo — dependendo mais da incisão na virilha do que de qualquer outra coisa, se foi dado um pontinho interno nela ou não —, a pessoa já volta para casa. “No dia seguinte, ela pode retomar a rotina de trabalho”, conta, animado, Francisco Carnevale, que é professor livre-docente da Medicina da USP e chefe do Serviço de Radiologia Vascular Intervencionista do InRad. Portanto, segundo o radiologista, trata-se de uma escolha capaz de oferecer resultados semelhantes aos das cirurgias de hemorroidas tradicionais, só que com uma recuperação bem mais rápida e menos sofrida.
Os graus da encrenca As veias hemorroidárias formam praticamente uma rede que circunda o reto e o ânus. Às vezes, elas se dilatam, mas se dilatam tanto que até se tornam flácidas. Aí, formam protuberâncias como se fossem varizes saltadas — só que lá mesmo, naquele lugar tão íntimo. “Quando o vaso dilatado se localiza na parte interna, isto é, dentro do reto, nós falamos que o problema está no grau 1”, explica o professor Carnevale. Ok, você não o vê, mas provavelmente consegue senti-lo. Afinal, mesmo discreto, é capaz de infernizar a vida com dor e prurido, sem contar o sangue no papel higiênico. No grau 2, a hemorroida sai, ultrapassando o limite do ânus quando você usa a privada. Mas, sem dar trabalho, ainda volta sozinha para dentro. Já no grau 3, ao escapulir, você já precisa empurrá-la com o dedo. No grau 4, esqueça: o vaso dilatado fica permanentemente pendurado para fora, causando ainda mais padecimento. Intestino muito preso — quando as fezes, de tão duras e ressecadas, vão embora machucando —, o hábito de andar demais de bicicleta, gravidez e obesidade são exemplos de situações que favorecem o aparecimento do martírio. Mas diga-se: de uns dez anos para cá, há uma nova compreensão sobre ele. Por que ninguém pensou nesse tratamento antes “Só na última década, descobrimos que as hemorroidas não são simplesmente veias dilatadas, feito as varizes nas pernas”, começa a explicar o professor Carnevale. “Na verdade, o que faz elas surgirem e crescerem é um fenômeno na fístula, que seria uma comunicação entre artérias e veias.” As artérias, você sabe, carregam o sangue oxigenado por todo o organismo. E as veias o levam de volta para captar novamente oxigênio nos pulmões. Mas não são, como alguns imaginam, duas redes de vasos separadas. “É como se a artéria, ao passar por determinadas regiões, fizesse uma curva e fosse se transformando em veia”, descreve o radiologista. É bem aí, nessa região da metamorfose, que pode ocorrer de o sangue arterial fluir com uma pressão tremenda. E, daí, despencar feito um jato forte na pobre veia, que talvez não aguente e se dilate. Ora, no fundo, a descoberta do papel das artérias na origem da hemorroida foi que criou uma nova possibilidade. Isso porque a embolização raramente é aplicada em veias. Já nas artérias, ela poderia ser cogitada. A ideia de embolizar Com a revelação, os coloproctologistas passaram a realizar uma técnica, a chamada desarterialização, em que introduzem um doppler pelo ânus. Até hoje, ela é uma das mais eficientes. As ondas sonoras dessa espécie de ultrassom são capazes de localizar a artéria causadora da hemorroida. “Desse modo, o cirurgião faz uma ligadura, isto é, dá uma espécie de laçada, estrangulando parcial ou totalmente esse vaso”, descreve o professor Carnevale. Mas foi então que radiologistas intervencionistas, como ele próprio, sacaram: “Eu já navegava com cateteres por pulmões, rins, fígado e próstata fazendo embolização para tratar outras doenças. Qual seria a dificuldade fazer a mesma coisa em uma hemorroida?”, questiona o médico. O princípio seria o mesmo do ponto que os cirurgiões dão nas artérias localizadas pelo doppler: bloquear o jato forte de sangue, findando sua pressão nas veias do reto. O primeiro diferencial da técnica brasileira Cá entre nós, um russo já tinha tentado embolizar hemorroidas na década de 1980, mas ninguém deu muita bola. “Até porque, naquela época, a técnica ainda não estava bem desenvolvida”, justifica o professor. Vale abrir parênteses: hoje, existem várias maneiras de um radiologista intervencionista embolizar um vaso. Ele pode injetar certos líquidos, como colas biológicas. Pode usar agentes particulados, que lembram grãos de areia — “é o que usamos para embolizar artérias que abastecessem um tumor no fígado de oxigênio e nutrientes”, exemplifica o professor. Finalmente, existem minúsculas molas metálicas, feitas de fios de platina ou de aço inoxidável. Foram estas as escolhidas pelo radiologista Vincent Vidal, com quem o professor Carnevale foi treinar a técnica para operar hemorroidas na França. “Ele então me disse que, após a embolização, os pacientes melhoravam muito dos sangramentos e da dor. Mas, um ano depois, 40% deles viam voltar os sintomas”, conta. Foi aí que o professor Carnevale se lembrou de um achado curioso. Quando ele embolizava a chamada artéria retal média para tratar homens com hiperplasia benigna da próstata — porque, em 10% dos casos, um ramo dela ia parar também nessa glândula —, os pacientes relatavam uma melhora hemorroida por tabela. Claro, não era a intenção do tratamento, mas….”Mas será que não seria o caso de provocar o entupimento dessa artéria também?”, indagava-se. Até o momento, outros grupos de radiologistas intervencionistas embolizam apenas as artérias superiores do reto. Minha dúvida: sem duas das três principais artérias que irrigam esse trecho final do intestino, ele não poderia sair prejudicado, até com uma necrose? “Sem perigo”, garantiu o professor, enquanto exibia a imagem de uma artéria retal superior. Eu descreveria suas extremidades como cipós. “Eu só embolizo um desses ramos”, justifica. Os outros, portanto, continuarão irrigando o reto. O segundo diferencial No procedimento, o médico se guia por uma arteriografia — uma fotografia digital extremamente precisa das artérias — e por uma tomografia. Esta mostra outras estruturas, além dos vasos de sangue. No entanto, a cereja do bolo do procedimento da USP talvez seja o software desenvolvido dentro do próprio Hospital das Clínicas pela GE. Ele analisa as imagens e aponta por onde o cateter deve ou não deve passar. Também indica o ponto exato em que a passagem do sangue precisa ser bloqueada. O terceiro ponto diferente As molas, no entanto, só servem de obstáculos para o fluxo sanguíneo das artérias. “Não conseguem migrar até aquela região em que ela se transforma em veia”, conta o radiologista. Por isso, antes de instalar as molinhas, ele injeta embolizantes particulados, que enchem de grãos as tais fístulas. Seriam uma garantia a mais. O sangramento, como na cirurgia tradicional, não some de uma hora para outra. Afinal, a parede do reto já estava inflamada e, no princípio, um procedimento ali só piora o seu estado. Na primeira semana, a recomendação é fazer uma dieta mais laxativa, para nada machucar ainda mais a região. Tirando isso, basta tomar analgésicos e antiespasmódicos. E só. Acabar com tanta dor pode ser mais simples.